REGIME JURÍDICO DA PREVENÇÃO, HABILITAÇÃO,
REABILITAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Lei
n.º 38/2004,
de
18 de Agosto
A Assembleia da República
decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, para valer
como lei geral da República, o seguinte:
Disposições gerais
Âmbito
A presente lei define as
bases gerais do regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e
participação da pessoa com deficiência.
Noção
Considera-se pessoa com
deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou
adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções
psicológicas, apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação
com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a
participação em condições de igualdade com as demais pessoas.
Artigo
3.º
Objectivos
Constituem objectivos da
presente lei a realização de uma política global, integrada e transversal de
prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência,
através, nomeadamente, da:
a) Promoção da igualdade de
oportunidades, no sentido de que a pessoa com deficiência disponha de condições
que permitam a plena participação na sociedade;
b) Promoção de
oportunidades de educação, formação e trabalho ao longo da vida;
c) Promoção do acesso a
serviços de apoio;
d) Promoção de uma
sociedade para todos através da eliminação de barreiras e da adopção de medidas
que visem a plena participação da pessoa com deficiência.
Princípios fundamentais
Princípio da singularidade
À pessoa com deficiência é
reconhecida a singularidade, devendo a sua abordagem ser feita de forma diferenciada,
tendo em consideração as circunstâncias pessoais.
Princípio da cidadania
A pessoa com deficiência tem direito ao acesso a todos os
bens e serviços da sociedade, bem como o direito e o dever de desempenhar um
papel activo no desenvolvimento da sociedade.
Princípio da não discriminação
1 - A pessoa não pode ser
discriminada, directa ou indirectamente, por acção ou omissão, com base na
deficiência.
2 - A pessoa com
deficiência deve beneficiar de medidas de acção positiva com o objectivo de
garantir o exercício dos seus direitos e deveres corrigindo uma situação
factual de desigualdade que persista na vida social.
Princípio da autonomia
A pessoa com deficiência
tem o direito de decisão pessoal na definição e condução da sua vida.
Artigo
8.º
Princípio da informação
A pessoa com deficiência tem direito a ser informada e
esclarecida sobre os seus direitos e deveres.
Princípio da participação
A pessoa com deficiência tem
o direito e o dever de participar no planeamento, desenvolvimento e
acompanhamento da política de prevenção, habilitação, reabilitação e
participação da pessoa com deficiência.
Princípio da globalidade
A pessoa com deficiência
tem direito aos bens e serviços necessários ao seu desenvolvimento ao longo da
vida.
Princípio da qualidade
A pessoa com deficiência
tem o direito à qualidade dos bens e serviços de prevenção, habilitação e
reabilitação, atendendo à evolução da técnica e às necessidades pessoais e
sociais.
Princípio do primado da responsabilidade pública
Ao Estado compete criar as
condições para a execução de uma política de prevenção, habilitação,
reabilitação e participação da pessoa com deficiência.
Princípio da transversalidade
A política de prevenção,
habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência deve ter um
carácter pluridisciplinar e ser desenvolvida nos diferentes domínios de forma
coerente e global.
Princípio da cooperação
O Estado e as demais
entidades públicas e privadas devem actuar de forma articulada e cooperar entre
si na concretização da política de prevenção, habilitação, reabilitação e
participação da pessoa com deficiência.
Princípio da solidariedade
Todos os cidadãos devem
contribuir para a prossecução da política de prevenção, habilitação,
reabilitação e participação da pessoa com deficiência.
Promoção e desenvolvimento
Intervenção do Estado
1 - Compete ao Estado a
promoção e o desenvolvimento da política nacional de prevenção, habilitação,
reabilitação e participação da pessoa com deficiência em colaboração com toda a
sociedade, em especial com a pessoa com deficiência, a sua família, respectivas
organizações representativas e autarquias locais.
2 - Compete ao Estado a
coordenação e articulação das políticas, medidas e acções sectoriais, ao nível
nacional, regional e local.
3 - O Estado pode atribuir
a entidades públicas e privadas a promoção e o desenvolvimento da política
nacional de prevenção, habilitação, reabilitação e participação, em especial às
organizações representativas das pessoas com deficiência, instituições
particulares e cooperativas de solidariedade social e autarquias locais.
4 - Compete ao Estado
realizar as acções de fiscalização necessárias ao cumprimento da lei.
Entidade coordenadora
1 - O Estado deve assegurar
a existência de uma entidade pública que colabore na definição, coordenação e
acompanhamento da política nacional de prevenção, habilitação, reabilitação e
participação da pessoa com deficiência.
2 - A entidade referida no número anterior deve assegurar
a participação de toda a sociedade, nomeadamente das organizações
representativas da pessoa com deficiência.
Intervenção de entidades públicas e privadas
1 - As entidades públicas e
privadas têm o dever de realizar todos os actos necessários para a promoção e o
desenvolvimento da política nacional de prevenção, habilitação, reabilitação e
participação da pessoa com deficiência.
2 - O Estado deve apoiar as
entidades públicas e privadas que realizem os actos previstos no número
anterior.
Relações com as organizações não governamentais
O Estado deve apoiar as
acções desenvolvidas pela sociedade, em especial pelas organizações
representativas da pessoa com deficiência, na prossecução dos objectivos da
presente lei.
Artigo
20.º
Coesão social
As entidades privadas, nomeadamente as empresas,
cooperativas, fundações e instituições com ou sem fins lucrativos, estruturas
representativas dos trabalhadores e associações de empregadores, devem, no
desenvolvimento da sua actividade e com vista ao reforço da coesão social,
promover a satisfação dos interesses económicos, sociais e culturais da pessoa
com deficiência.
Rede de apoio de serviços e equipamentos sociais
Compete ao Estado promover
a celebração de protocolos, nomeadamente com as autarquias locais e as
instituições particulares e cooperativas de solidariedade social, com vista à
criação de uma rede descentralizada de apoio de serviços e equipamentos sociais
à pessoa com deficiência.
Apoio à família
Compete ao Estado adoptar medidas
que proporcionem à família da pessoa com deficiência as condições para a sua
plena participação.
Voluntariado
Compete ao Estado
incentivar o voluntariado e promover a participação solidária em acções de
apoio a pessoas com deficiência num quadro de liberdade e responsabilidade,
tendo em vista um envolvimento efectivo da sociedade no desenvolvimento de
acções de voluntariado no âmbito da política de prevenção, habilitação,
reabilitação e participação da pessoa com deficiência.
Prevenção, habilitação, reabilitação e participação
Prevenção
Prevenção
1 - A prevenção é
constituída pelas medidas que visam evitar o aparecimento ou agravamento da
deficiência e eliminar ou atenuar as suas consequências.
2 - O Estado deve promover,
directa ou indirectamente, todas as acções necessárias à efectivação da
prevenção, nomeadamente de informação e sensibilização sobre:
a) Acessibilidades;
b) Sinistralidade, em
especial resultante da circulação de veículos e de actividades laboral,
doméstica e de tempos livres;
c) Consumo de substâncias
que afectem a saúde, em especial álcool, droga e tabaco;
d) Hábitos alimentares;
e) Cuidados peri, pré e
pós-natais;
f) Segurança, higiene e
saúde no trabalho.
Habilitação e reabilitação
Habilitação e reabilitação
A habilitação e a reabilitação são constituídas pelas
medidas, nomeadamente nos domínios do emprego, trabalho e formação, consumo,
segurança social, saúde, habitação e urbanismo, transportes, educação e ensino,
cultura e ciência, sistema fiscal, desporto e tempos livres, que tenham em
vista a aprendizagem e o desenvolvimento de aptidões, a autonomia e a qualidade
de vida da pessoa com deficiência.
Direito ao emprego, trabalho e formação
1 - Compete ao Estado
adoptar medidas específicas necessárias para assegurar o direito de acesso ao
emprego, ao trabalho, à orientação, formação, habilitação e reabilitação
profissionais e a adequação das condições de trabalho da pessoa com deficiência.
2 - No cumprimento do
disposto no número anterior, o Estado deve fomentar e apoiar o recurso ao
auto-emprego, teletrabalho, trabalho a tempo parcial e no domicílio.
Conciliação entre a actividade profissional e a vida familiar
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar o direito de conciliação entre a
actividade profissional e a vida familiar da pessoa com deficiência, bem como
dos familiares com pessoas com deficiência a cargo.
Artigo
28.º
Quotas de emprego
1 - As empresas devem,
tendo em conta a sua dimensão, contratar pessoas com deficiência, mediante
contrato de trabalho ou de prestação de serviço, em número até 2% do total de
trabalhadores.
2 - O disposto no número
anterior pode ser aplicável a outras entidades empregadoras nos termos a
regulamentar.
3 - A Administração Pública
deve proceder à contratação de pessoas com deficiência em percentagem igual ou
superior a 5%.
Direitos do consumidor
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar os direitos de consumidor da
pessoa com deficiência, nomeadamente criando um regime especial de protecção.
Direito à segurança social
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar a protecção social da pessoa com
deficiência, mediante prestações pecuniárias ou em espécie, que tenham em vista
a autonomia pessoal e uma adequada integração profissional e social.
Artigo
31.º
Direito à saúde
Compete ao Estado adoptar medidas
específicas necessárias para assegurar os cuidados de promoção e vigilância da
saúde, o despiste e o diagnóstico, a estimulação precoce do tratamento e a
habilitação e reabilitação médico-funcional da pessoa com deficiência, bem como
o fornecimento, adaptação, manutenção ou renovação dos meios de compensação que
forem adequados.
Direito à habitação e urbanismo
Compete ao Estado adoptar,
mediante a elaboração de um plano nacional de promoção da acessibilidade, tendo
em atenção os princípios do desenho universal:
a) Medidas específicas
necessárias para assegurar o direito à habitação da pessoa com deficiência, em
articulação com as autarquias locais;
b) Medidas específicas
necessárias para assegurar o acesso da pessoa com deficiência, nomeadamente aos
espaços interiores e exteriores, mediante a eliminação de barreiras
arquitectónicas na construção, ampliação e renovação.
Direito aos transportes
Compete ao Estado adoptar, mediante a elaboração de um
plano nacional de promoção da acessibilidade, medidas específicas necessárias
para assegurar o acesso da pessoa com deficiência, nomeadamente à circulação e
utilização da rede de transportes públicos, de transportes especiais e outros
meios de transporte apropriados, bem como a modalidades de apoio social.
Direito à educação e ensino
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar o acesso da pessoa com
deficiência à educação e ao ensino inclusivo, mediante, nomeadamente, a
afectação de recursos e instrumentos adequados à aprendizagem e à comunicação.
Direito à cultura e ciência
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar o acesso da pessoa com
deficiência à cultura e à ciência, mediante, nomeadamente, a afectação de
recursos e instrumentos que permitam a supressão das limitações existentes.
Sistema fiscal
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar o acesso da pessoa com deficiência
a bens essenciais que visem melhorar as condições de vida, nomeadamente
mediante a concessão de benefícios fiscais.
Mecenato
Compete ao Estado adoptar medidas específicas necessárias
para assegurar o incentivo do mecenato, mediante, nomeadamente, a criação e a
fixação de isenções fiscais.
Direito à prática do desporto e de tempos livres
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar o acesso da pessoa com
deficiência à prática do desporto e à fruição dos tempos livres, mediante,
nomeadamente, a criação de estruturas adequadas e formas de apoio social.
Alta competição
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar a prática do desporto de alta
competição pela pessoa com deficiência, mediante, nomeadamente, a criação de
estruturas adequadas e formas de apoio social.
Participação
Participação
A participação é
constituída pelas medidas específicas necessárias para assegurar a participação
da pessoa com deficiência, ou respectivas organizações representativas,
nomeadamente na elaboração da legislação sobre deficiência, execução e
avaliação das políticas referidas na presente lei, de modo a garantir o seu
envolvimento em todas as situações da vida e da sociedade em geral.
Políticas transversais
Estatuto patrimonial
Compete ao Estado adoptar
medidas específicas necessárias para assegurar a protecção patrimonial da
pessoa com deficiência.
Intervenção precoce
Compete ao Estado
desenvolver acções de intervenção precoce, enquanto conjunto de medidas
integradas de apoio dirigidas à criança, à família e à comunidade, com o
objectivo de responder de imediato às necessidades da criança com deficiência.
Informação
1 - O Estado e as demais
entidades públicas e privadas devem colocar à disposição da pessoa com
deficiência, em formato acessível, designadamente em braille, caracteres
ampliados, áudio, língua gestual, ou registo informático adequado, informação
sobre os serviços, recursos e benefícios que lhes são destinados.
2 - Os órgãos de comunicação social devem disponibilizar
a informação de forma acessível à pessoa com deficiência bem como contribuir
para a sensibilização da opinião pública, tendo em vista a eliminação das
práticas discriminatórias baseadas na deficiência.
Sociedade da informação
Compete ao Estado adoptar,
mediante a elaboração de um plano nacional de promoção da acessibilidade,
medidas específicas necessárias para assegurar o acesso da pessoa com
deficiência à sociedade de informação.
Investigação
Compete ao Estado promover e apoiar programas de
investigação e desenvolvimento com carácter pluridisciplinar que permitam
melhorar os meios de prevenção, habilitação e reabilitação.
Formação
1 - Compete ao Estado
promover e apoiar a formação específica de profissionais que actuem na área da
prevenção, habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência.
2 - As entidades competentes
devem desenvolver, sempre que se justificar, nos programas de formação,
conteúdos que contribuam para o processo de prevenção, habilitação e
reabilitação da pessoa com deficiência.
Estatísticas
Compete ao Estado assegurar
a recolha, tratamento e divulgação de dados estatísticos relacionados com a
deficiência.
CAPÍTULO
VI
Disposições finais
Artigo
48.º
Fundo de apoio
A lei poderá prever a
constituição de um fundo de apoio à pessoa com deficiência constituído pelo
produto de coimas de processos de contra-ordenação por violação dos direitos da
pessoa com deficiência.
Orçamento
Os encargos decorrentes da
execução da presente lei devem ser inscritos nos orçamentos dos respectivos
ministérios.
Regulamentação
O Governo deve aprovar as
normas necessárias ao desenvolvimento da presente lei.
Revogação
É revogada a Lei n.º 9/89,
de 2 de Maio.